sábado, 30 de março de 2013

Navegar





Deixar para trás a terra e viver o mar, belos sábados em que entregamos os nossos caminhos ao sabor do vento e da roda de leme, em que sentimos a aragem pelo corpo e o sol na cara, em que libertamos o espirito rumo a uma nova semana.

quarta-feira, 27 de março de 2013

Existir é Ser Possível Haver Ser






Ah, perante esta única realidade, que é o mistério,
Perante esta única realidade terrível — a de haver uma realidade,
Perante este horrível ser que é haver ser,
Perante este abismo de existir um abismo,
Este abismo de a existência de tudo ser um abismo,
Ser um abismo por simplesmente ser,
Por poder ser,
Por haver ser!
— Perante isto tudo como tudo o que os homens fazem,
Tudo o que os homens dizem,
Tudo quanto constroem, desfazem ou se constrói ou desfaz através deles,
Se empequena!
Não, não se empequena... se transforma em outra coisa —
Numa só coisa tremenda e negra e impossível,
Urna coisa que está para além dos deuses, de Deus, do Destino
—Aquilo que faz que haja deuses e Deus e Destino,
Aquilo que faz que haja ser para que possa haver seres,
Aquilo que subsiste através de todas as formas,
De todas as vidas, abstratas ou concretas,
Eternas ou contingentes,
Verdadeiras ou falsas!
Aquilo que, quando se abrangeu tudo, ainda ficou fora,
Porque quando se abrangeu tudo não se abrangeu explicar por que é um tudo,
Por que há qualquer coisa, por que há qualquer coisa, por que há qualquer coisa!

Minha inteligência tornou-se um coração cheio de pavor,
E é com minhas ideias que tremo, com a minha consciência de mim,
Com a substância essencial do meu ser abstrato
Que sufoco de incompreensível,
Que me esmago de ultratranscendente,
E deste medo, desta angústia, deste perigo do ultra-ser,
Não se pode fugir, não se pode fugir, não se pode fugir!

Cárcere do Ser, não há libertação de ti?
Cárcere de pensar, não há libertação de ti?

Ah, não, nenhuma — nem morte, nem vida, nem Deus!
Nós, irmãos gêmeos do Destino em ambos existirmos,
Nós, irmãos gêmeos dos Deuses todos, de toda a espécie,
Em sermos o mesmo abismo, em sermos a mesma sombra,
Sombra sejamos, ou sejamos luz, sempre a mesma noite.
Ah, se afronto confiado a vida, a incerteza da sorte,
Sorridente, impensando, a possibilidade quotidiana de todos os males,
Inconsciente o mistério de todas as coisas e de todos os gestos,
Por que não afrontarei sorridente, inconsciente, a Morte?
Ignoro-a? Mas que é que eu não ignoro?
A pena em que pego, a letra que escrevo, o papel em que escrevo,
São mistérios menores que a Morte? Como se tudo é o mesmo mistério?
E eu escrevo, estou escrevendo, por uma necessidade sem nada.
Ah, afronte eu como um bicho a morte que ele não sabe que existe!
Tenho eu a inconsciência profunda de todas as coisas naturais,
Pois, por mais consciência que tenha, tudo é inconsciência,
Salvo o ter criado tudo, e o ter criado tudo ainda é inconsciência,
Porque é preciso existir para se criar tudo,
E existir é ser inconsciente, porque existir é ser possível haver ser,
E ser possível haver ser é maior que todos os Deuses.

Álvaro de Campos, in "Poemas"
Heterónimo de Fernando Pessoa

segunda-feira, 25 de março de 2013

Já só cheiro a peixe assado...







A pedido de um elemento de uma família, publico um texto de 2011, de minha autoria, à data parte de 135 post´s que publiquei no sitio da Associação Académica.

"Já só cheiro a peixe assado, é o gajo cá debaixo, o marido da gorda, a zarolha, que teima em assar carapaus ensardinhados na varanda ao mais pequeno aviso de sol. Vai entrar para a universidade, pelo menos até me pediu exames dos anos anteriores para” treinar”, também me disse que vai logo meter a papelada para ser sócio da AA, em atenção ao vizinho de cima, (eu), e, já com dose de paciência extra, vai esperar que lhe seja enviado o cartão de sócio sem reclamar, já o avisei, bem, ele quer mesmo é os exames, depois de entrar vai-se sentir mais poderoso, esquecer-se-á que a mulher é gorda e zarolha e se estiver à espera mais do que um mês, vai logo começar a reclamar. O gajo é parvo, já me secou a sardinheira que com tanto carinho tapei da geada durante a invernia, eu expliquei-lhe:
-Inácio (é o nome dele), se entrares para a universidade tens que votar em nós para a AA, prontificou-se de imediato, fazia parte dos 72 que amavelmente votavam para os órgãos da AA, disse lhe, setenta e dois? Perguntou-me, sim, achas poucos? Pá mas olha lá quantos alunos são? Uns 14.000, riu…não gostei da maneira como riu e vi-me obrigado a explicar-lhe algumas coisas.
A AA é uma associação de compadre e comadres, já velhos, carcomidos pelo bicho da madeira, se analisarmos, talvez nem legitimidade tenha para exercer a representatividade dos alunos, entre 13 500, 72 votos é questionável? Eu durante dois anos e pouco fui, estatutariamente, o presidente de todos os alunos, mas cansei-me, cansei-me das birras, das afirmações, das duvidas e das certezas, dos bons e dos maus mas, atendi sempre mais que os 72 que votaram, saí também porque deixei de ser aluno da Universidade, saí também porque deixei de ser compadre e porque o bicho da madeira entrou-me pelos ossos e atravessando-me a alma rumo ao vazio. Tudo aquilo que a AA fez, ou não foi divulgado, ou se foi, perceberam mal, ou tinha algum defeito.
Inácio franziu o sobreolho e atentamente escutava, a rádio tocava Amália, a gorda chamava-o, e o peixe estava assado, depois eu conto-vos o resto…
Osvaldo Karmeirim (pseudónimo),
(Consultor sexual)
Ex- aluno, dirigente, professor, jardineiro…"

Experimentação




A cada dia em que o sol se põe, mais experimento o destino de caminhar só pelo mundo, mais sinto que o nascer de um outro tempo nunca mais chega, mais tudo me assemelha igual, mais tento treinar a cartada da vida, mais pressinto deitado numa cama qualquer a essência de não viver, mais tento falar e não articulo vocábulo algum, mais preciso de compreender a beleza de como é usufruir de viver, mais dou sem pretender, mais o céu me desaba em cima, mais de mim defino, mais apreendo o pior de todos os cosmos, mais noites mudas aparecem, mais perspetiva solitária tenho na avaliação dos outros, mais adivinho o que não quero, mais me coloco de parte, mais sinto a luz encrespar caminho, mais circunstâncias em que não sei dizer porque, mais louco permaneço, mais portas cerradas me surgem pela frente, mais requinte alienado encontro, mais rostos de angústia avisto, mais nutro amor pelas trevas, mais me tento esconder, mais contemplo a mentira espelhada nos olhares eventuais, mais aguardo por um outro nascer de sol, menos negro, menos idêntico, menos jogadas sinto que tenho que praticar, menos temor tenho de não viver, menos silêncios tenho que proferir, menos me preocupo com não existir, menos preciso que me deem, menos porção de céu contemplo no horizonte, menos dos outros preciso, menos tenho que entender o mundo dos semelhantes, menos ruído noturno se hospeda, menos opinião por terceiros tenho, menos me sinto, menos me disponho à parte das realidades, menos escuridão encontro no meu trilho, menos me interrogo, menos lúcido estou, menos verdades consigo ver.