Seabra de seu nome, funileiro de profissão, artífice,
malandro, boémio mas leal, sempre leal.
Conheci-o no início dos anos 80, era velho, já muito velho à
altura uns 80 e tal anos, tez negra aquecida pelo gás que o maçarico libertava,
rugas a condizer, estatura mediana, coluna consumida pelo vício do trabalho, na
voz a temperatura da fusão do metal e na expressão a dureza da privação da
liberdade que a policia politica lhe impôs. Companheiro de Cunhal, companheiro
de meio mundo, companheiro da imperfeição e da autonomia, companheiro dos
sofridos, companheiro dos pobres, amante confesso do Avante, bíblia do partido.
De cigarro ao canto da
boca falava sem mais parar, contava coisas que só ele sabia, sabia de história,
geografia, musica, poesia, conhecia todos os escritores revolucionários,
tratava as obras de Marx por tu, ensinava-me frases dos antigos filósofos e
recitava frases dos que mais gostava, perdia horas a ouvi-lo a espaços
interrompido pelo estalo do maçarico que com carinho moldava a chapa
acompanhado de um “chega-te mais para trás”, a distância era sempre a mesma era
o vício de acarinhar, de estar sempre preocupado com os outros, de ser pai do mundo.
Dele, nunca ninguém conheceu família, dizia-se que tinha casado
com o partido e que os seus filhos eram os camaradas mais novos, dentro do
partido foi pai de muitos sim, avô de outros tantos e fiel camarada da multidão.
Aos poucos ia-me impingindo os panfletos que guardava numa
mala preta de asas estaladas pelo tempo e atolada de informação comunista,
tinha-lhe ficado o jeito de ler, único passatempo prisional, mesmo esse era
sonegado e comprado a troco de uns favores de passar familiares fronteira a
dentro para fugirem à guerra do ultramar, ele sabia isso tudo, ele estava lá,
foi lá que conheceu o meu avô, Zé Guedes, foi lá que provou a tortura, o gosto
das mãos amargas da pide (a letra pequena é de propósito), o frio das marés, a privação
do sono entre outras coisas.
Entre uma ponta de beata ardida e outra a arder no canto da
boca, falava-me da vida que não teve contando-me apenas tudo o que viveu, à
altura de pouco me servia, fascinava-me antes as historias que contava ou a cultura
que eu tentava absorver, hoje, vejo um homem profundamente marcado como todos
os comunistas militantes o foram, hoje, sinto nos beiços o gosto dos sulfatos
libertados pela fusão da capa, e o cheiro ao acido na ponta do maçarico e tenho
saudades do velho Seabra. Um abraço camarada.