(…) Talhada pela pigmentação da pele que ele exibia suportou,
tristemente olhou-o nas origens, fitou-o por ápices, disse-lhe:
- Estás triste, pareces triste, deves de estar triste.
Respondeu-lhe:
-São teus olhos que não alcançam a luz dos meus, não te focalizes
nas ocasiões da vida, foca-te na vida toda.
Pareceu-lhe afastada, sintomaticamente ausente, pensativa,
demasiado cismática, explicou-lhe as coincidências com que a vida a mimoseou,
pareceu-lhe desassossegada, eram as muitas situações que lhe toldavam a razão
de ser lógica, parecia retirada de um filme feliniano, não sei até que ponto
queria perder, não sei se dissiparia tudo, ganhar era coisa impossível, que
tens a perder?
- Nada, eu não quero perder, perder é um verbo que não conjugo
na minha alma, tem que ser tudo uma questão de ganhar ou perder?
- Tem, na vida que eu elegi perder é o contrário de ganhar, eu
não fui cinzelado para perder, farei tudo para ganhar.
O espaço diminuía, ele não tinha a intrepidez de se aproximar
dela, era tudo uma questão de ter de ser e ser infindavelmente, prometeram
juras, perpetuamente gratos pelo facto de nascerem continuaram apaixonados pela
vida, perduravelmente.
Os seus olhos grandes libertaram suor, sua alma abriu-se para
ele, as palavras transformadas pelo jeito que lhe ficou de pequena, prolongando
consoantes de forma continuadamente sexi penetraram no seu ego e fez-se luz na
sua alma.
Sabia o que queria, sabia que unicamente queria saber o que
queria, parecia ser eterno o sentimento, queria que o sentimento fosse eterno,
e tu?
- De mim nada sei, sei que sou apenas um instrumento banal
nesta orquestra de especialistas, sei que a maneira como a voz se tolda inicia
algo de diferente, coisa atroz e deficientemente permanente, não tenho medo nem
medos se a minha voz se calar o meu espírito falará por entre um qualquer
silêncio, não tenho medos nem medo…
Fechava-se mais uma parcela de espaço, o vómito do pânico não
permitiu que as palavras fossem produzidas, não faltava já mais nada, faltava
tudo e tudo era nada.
Aparentemente cerrou-se mais uma janela e abriram-se as portas
principais, era o tempo de jogar tudo, morrer ou viver…
Parecia-lhe que o tempo parara, que não existia mais a condição
para efetuar a operação logica discursiva e mental de todas as premissas,
chegaram a conclusões, disse-lhe:
- Utiliza mecanismos inteligentes para deixarmos de viver
assim.
-Assim como?
- Na esperança de nunca morrer.
- Que queres que faça é a única convicção de existir, penso
nela, por isso não perco nem me perco, analiso várias vezes a morte, encaro-a
como um engenho integrante do meu processo cognitivo, nunca te apercebeste?
- Sim já, pareces-me estranho por vezes, quero que tudo
contigo acabe em “te”.
- Sabes da minha admiração por Pessoa, leio-o algumas vezes
para tentar entender os enigmas da vida, disse: “O próprio viver é morrer, porque não temos um dia a mais na nossa vida
que não tenhamos, nisso, um dia a menos nela.” Sendo assim, por que não nos
preocupamos mais com a contagem decrescente do que com as coisas banais? Os
empregos, a casa, a família, a própria vida?
Tipo: Hoje o dia no emprego foi uma merda. Em vez disso
pensar: Hoje foi menos um dia na minha vida, não vou baixar os braços e lutarei
por ela até ao último dia que me restar. A outra que é fufa, o outro que anda
com a outra, o carro daquele, a camisa do outro. Sim e menos um dia de vida? Que
me dizes?
- É uma maneira de apresentar as coisas, sabes que também
penso um pouco assim mas ainda me sinto presa à infância, presa a estereótipos
infelizmente conservadores, sabes bem que eu fui sempre eu, menina e mulher
tudo no mesmo dia, sabes que eu fui apenas aquilo que consegui ser, fui mãe, mulher,
filha e socialmente apreciada pelos que me rodeiam. Sabes que eu sou mãe,
mulher, filha e mito social…
- Sim sei, interrompi, és vítima da maior prisão de todas, não
seres aquilo que querias ser, vives cada dia em função daquilo que os outros
querem de ti, deverias pensar mais em ti, na tua maneira de permanecer dentro
dos outros sem interferires com a tua alma na caridade alheia… Deixa-me falar,
eu estava a falar. Sim deixo-te falar, deixo-te sempre falar…
- Temos maneiras interessantes de ver o instante, tu olhas
pela janela e vês vento e nuvens, eu, olhando ao mesmo tempo pela mesma
janela vejo o sol e mar…Queres dizer que sou pessimista? Não, apenas que és
mais frio e calculista do que eu…Pois, tens a sensibilidade própria de uma
menina de 7 anos e o corpo de mulher de 35 e fazes-me viver nesta espécie de ilusão
de ótica restringindo os meus desejos pessoais e vivenciando sentimentos mais
nobres.
- Falava contigo toda a noite, mimava-te sem haver fim,
deitava-me e dormia, dormia tudo numa só noite, dormia ate a minha alma parecer
livre, mesmo não sendo, mesmo presa a tudo aquilo que se move sem se ver, à ingratidão
de uns, à capacidade desta forma de chantagem emocional a que me prendo, queria
acordar, depois de dormir tudo, contigo a meu lado, no teu corpo. Tenho de me
ir deitar, sem ti, na minha prisão.
- Sim podes ir, vai mas pensa, nunca deixes de pensar, se não te
for oportuno pensar, deixa-te levar pelos sonhos que te acalmam a noite fria
que sozinha passarás, sei disso, sei que foste tudo, que és tudo e tudo é nada,
que tudo contigo acaba em “te”, não tenho medo, nem medos…(…)
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